A fumaça do cigarro nunca pesou tanto nos seus pulmões. Era a culpa entrando a cada tragada e permanecendo no seu organismo mesmo quando ele jogava pra fora toda a poeira em suspensão. Inspira, expira, inspira, expira...Por mais que expirasse com força, a culpa continuava lá, alojada na caixa dos peitos, dançando dentro dele com saltos agulha, dançava um tango, obviamente, e dançava com toda a tristeza e precisão que o tango exige. Como toda mulher, a culpa era traiçoeira, vingativa, e insistia em deixar uma marca dolorida dentro dele. Inspira, expira, inspira, expira...Levantou-se para abrir de vez as cortinas que permitiam a entrada da luz por frestas. Escancarou-nas e agora a luz invadia por inteiro o seu apartamento. O excesso de luminosidade e ar fresco causaram-lhe certa vertigem. Apoiou-se no parapeito, baixou a cabeça, respirou, respirou, respirou.
O seu peito ainda estava carregado da fumaça suja do cigarro, mesmo com todo esse ar fresco circulando pela casa agora. Sentou no sofá, fechou os olhos e tentou sentir a luz morna da manhã esquentando o seu corpo. Isso sempre lhe trouxera conforto, mas hoje, rá, hoje, não. Hoje a culpa era a dona da vez e dançava, dançava, dilacerava o peito dele. Nunca uma tragada houvera pesado tanto. Só restava a ele respirar cada vez mais fundo. Fundo, fundo, profundo...